Há 70 anos trabalhamos no combate à hanseníase no Brasil, conhecemos e convivemos com uma realidade que preocupa hansenologistas e profissionais de saúde das mais diferentes áreas. Por isso, queremos e devemos alertar a sociedade brasileira – pais, educadores, autoridades de todas as áreas e esferas, adultos e crianças – sobre o triste cenário que poucos conhecem, mas que a todos afeta: o Brasil ocupa 2° lugar no ranking mundial da doença, atrás da Índia. A hanseníase cresce silenciosamente provocando sequelas irreversíveis e afastando do trabalho e do convívio crianças, jovens, adultos e idosos.
Vários problemas se apresentam neste cenário: médicos despreparados para o diagnóstico, profissionais da atenção básica sem treinamento adequado, universidades que formam médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde sem o preparo necessário para lidar com esta doença, educadores, pais e formadores de opinião que evitam ou desconhecem totalmente o assunto, falta de recursos e interesse para pesquisa, cobertura insuficiente da população pela estratégia saúde da família, além da problemática jurídica em torno dos direitos das pessoas vítimas da hanseníase – doentes que passaram a vida em leprosários e filhos de pacientes que viveram internados em preventórios mesmo sem ter a doença, sendo todos privados de seus direitos básicos e hoje esquecidos em antigas colônias e dependendo de dedicados profissionais de saúde e da boa vontade de abnegados voluntários.
Pergunta-se então: que cura é esta que livra o doente do bacilo causador da hanseníase, mas deixa o paciente com incapacidades que o afastam do trabalho e da sociedade? Nós, profissionais da saúde, um exército – que poderia e deveria ser bem maior – que trabalha no combate à hanseníase neste país de alta endemicidade, nos indignamos com isso. O tema tem de voltar à escola e a toda sociedade. Negar o assunto é conferir força a uma sucessão de erros gravíssimos para todo o Brasil: é estigmatizar o paciente que acaba diagnosticado tardiamente, ou que nega a própria doença, é reforçar o preconceito, é contribuir para que a hanseníase vitime mais seres humanos. O bacilo não escolhe raça, condição econômica ou cultural.
Alertamos para o contingente altíssimo de doentes que sequer têm o diagnóstico e sabe-se lá quando cairão nas mãos de um agente comunitário de saúde, um enfermeiro, médico, ou um amigo que os alerte e os encaminhe ao serviço especializado para devido tratamento.
Sabemos que o diagnóstico da hanseníase é difícil. Exames de laboratório conseguem identificar menos da metade dos casos; o diagnóstico depende do preparo e treinamento do médico. Mas o médico capacitado reconhece a doença e isso basta para que o paciente seja tratado e curado. O que não aceitamos é que doentes sejam “desdiagnosticados” e percam o direito a um digno tratamento. Desdiagnósticos estes feitos por exames clínicos pouco acurados e, às vezes, baseados apenas na presença exclusiva de lesões cutâneas, sem dar importância aos sintomas e também ao exame neurológico essencial para o diagnóstico da hanseníase.
Por isso, alertamos toda a sociedade brasileira para que volte seus olhos para este tema que apresenta índices ainda preocupantes em nosso país. É hora de assumir um problema e somar esforços para combatê-lo. Afinal, hanseníase tem cura, temos medicamento gratuito em todo o país e profissionais de saúde capacitados e comprometidos com a causa – precisaríamos muito mais, é verdade. E estamos comemorando o fato de o Brasil poder contar agora com mais 35 médicos hansenologistas que passaram no Exame de Suficiência para obtenção do Título de Especialista em Hansenologia, realizado durante o 14° Congresso Brasileiro de Hansenologia, que aconteceu de 8 a 11 de novembro de 2017, em Belém do Pará.
Além disso, contamos com a campanha nacional Todos Contra a Hanseníase, uma estratégia de comunicação que criamos para “falar” com educadores, pais, doentes de hanseníase que convivem com o preconceito, crianças, autoridades de Educação e Saúde, instâncias do Judiciário brasileiro, políticos, imprensa e formadores de opinião em geral. Queremos que o assunto volte às salas de aula, que a hanseníase seja ensinada como uma doença curável transmitida por um bacilo. Queremos que o Brasil tenha mais profissionais de saúde formados e sensibilizados para diagnosticar a doença. E queremos, sim, aumentar os diagnósticos da doença, pois apenas assim podemos contribuir para transformar um cenário doloroso no Brasil.
Temos, ainda, uma dívida impagável com as vítimas de hanseníase e os filhos, muitas vezes sadios, de pacientes internados em instituições e segregados do mundo por longos anos. São cidadãos que desconhecem suas origens e até hoje procuram pais, irmãos, filhos ou amigos. Países como o Japão reconheceram o horror com que foi tratada esta população e buscaram reparar sua história com indenizações às vítimas do sistema segregador e com preservação da história. Aqui chamamos a atenção da classe de advogados, Judiciário e Ministério Público.
A Sociedade Brasileira de Hansenologia está aberta a conversar com todos os públicos de interesse e continuará promovendo treinamentos gratuitos a profissionais de saúde no Brasil. Não basta diminuir o índice de notificações oficiais. Precisamos chegar a todos os doentes, quebrar a cadeia de transmissão do bacilo causador da hanseníase e, só então, começar a reverter este triste cenário.
E aqui lançamos nosso último alerta, especialmente para secretários de Saúde dos municípios, prefeitos, autoridades em geral e professores municipais: não é porque o índice de prevalência da hanseníase é baixo em suas localidades que a doença não existe. Nossa experiência, em todo o Brasil, mostra que basta promover ações de busca ativa de casos que o número de doentes se multiplica. Crianças são vítimas desta doença que leva de 5 a 10 anos para se manifestar. Hanseníase é uma doença de lenta evolução, e esta criança se infectou pelo contato com alguém próximo, geralmente um familiar, e também está transmitindo para seus amigos, parentes, vizinhos, podendo tornar-se incapacitada muito cedo. Por isso, é essencial, digno e humano diagnosticar precocemente.
Reafirmamos nosso compromisso em combater a hanseníase no Brasil com diagnósticos, treinamentos para profissionais de saúde e diálogo com a sociedade civil. Além disso, em 2018, vamos abrir diálogo com outros públicos, a começar pelos educadores e o sistema judiciário. A sociedade civil brasileira pode também fazer o seu papel e transformar este cenário. Convidamos vocês, público citado aqui, a falar sobre a hanseníase, a conhecer a cartilha educativa “Todos Contra a Hanseníase”, compartilhar este conteúdo, perguntar para o seu médico, conversar na escola e, finalmente, respeitar o paciente vítima de hanseníase. Cada um tem um grande papel a fazer. Só assim podemos evoluir como sociedade.
Somos todos contra a hanseníase!
Claudio Guedes Salgado
Presidente SBH