Equívocos sobre distribuição de médicos
Adib D. Jatene
Em medicina se aprende que o diagnóstico correto é que determina a terapêutica. Se o diagnóstico estiver errado, a terapêutica também será errada. Isso me ocorreu quando tomei conhecimento de estratégia em elaboração no governo para garantir a presença de médicos em pequenos municípios, em áreas remotas e nas periferias das grandes cidades.
O diagnóstico, a meu ver, equivocado, seria baseado em informações de prefeitos, e até governadores, de que não conseguem contratar médicos para o Programa de Saúde da Família (PSF), mesmo oferecendo salários superiores a R$ 10 mil. Concluem, a partir daí, que o problema é falta de médicos. O corolário seria a ampliação de vagas em faculdades públicas, abertura de novas faculdades e, pasmem, flexibilização nos critérios de revalidação de diplomas obtidos no estrangeiro. Esses critérios foram recentemente revistos e consolidados no projeto Revalida.
Segundo as informações, propõe-se a contratação de médicos no exterior (leia-se Bolívia e Cuba, entre outros), que viriam como estagiários para trabalhar nas áreas específicas para as quais não se consegue contratar médicos. O estágio seria cumprido por dois anos sob supervisão, após os quais o diploma seria reconhecido, beneficiado pela anunciada flexibilização dos critérios. Como o assunto está em apreciação e, ao que me consta, a decisão ainda não foi tomada, atrevo-me a algumas considerações sobre o tema.
Concordo com a ideia de que nos faltam médicos. Acontece que, baseadas nessa constatação, diversas universidades, não apenas privadas, mas também públicas, criaram mais cursos, ampliando o número de vagas. Em 1996 tínhamos 82 faculdades de medicina. Hoje temos 187. Nos últimos 15 anos foram criados 105 cursos de medicina, 70 dos quais privados. Quando todos tiverem completado pelo menos seis anos, oportunidade em que formarão sua primeira turma, estaremos graduando aproximadamente 18 mil médicos por ano, o que significa quase duplicar o número de formados.
Se hoje temos 1,9 médico por mil habitantes, dentro de poucos anos ultrapassaremos os 2,5/1.000, considerados adequados. O problema que temos enfrentado é o de capacitar esses médicos para atender a população, sem utilizar a alta tecnologia, e criar condições nos diferentes locais em que irão atuar capazes de lhes oferecer condições de trabalho e o adequado suporte.
Por outro lado, a má distribuição não tem relação direta com o número de profissionais existentes. Se fosse assim, as capitais, onde vivem 20% da população do País e onde se concentram 50% dos médicos, estariam todas bem servidas. Exatamente nas capitais, e nas respectivas áreas metropolitanas, é onde se observam em suas periferias as carências mais sentidas desses profissionais, limitando a ampliação do PSF.
Isso ocorre porque tradicionalmente os médicos se localizam perto dos hospitais, que lhes dão suporte. Nas grandes cidades, os hospitais concentram-se nas áreas mais antigas e ricas, deixando as periferias sem eles e, em consequência, sem médicos. Em 1999, demonstrei que na capital de São Paulo, em 25 distritos onde vivia 1,8 milhão de pessoas, existiam na média 13 leitos por mil habitantes. Nos outros 71 distritos, onde moravam 8,1 milhões de habitantes, havia 0,6 leito por mil. Nesse grupo foi possível destacar 39 distritos com mais de 4 milhões de habitantes onde não havia nenhum leito. Portanto, na capital de São Paulo, para colocar nestas áreas dois leitos por mil habitantes, há um déficit de 12 mil leitos, o que significaria 60 hospitais de 200 leitos. E isso para atendimento de casos eletivos e de urgência. Não se está cogitando de leitos para doentes crônicos.
As equipes de Saúde da Família necessitariam de ambulatórios de especialidade para referir pacientes, os quais, por sua vez, precisariam de oportunidade para eventuais internações. Acontece que esses leitos não existem onde está a maior concentração de população.
Criou-se em nosso meio a ideia de que os graduados em medicina devem complementar sua formação com a residência médica. Como as vagas para residência são em número menor que o de formandos, estabeleceu-se, na verdade, um novo vestibular para ingresso nela. No 6.º ano, antes de se aprimorarem no internato para atender os pacientes, dispensando a alta tecnologia, os alunos fazem "cursinhos" e se preparam para ingressar na residência. Os que não passam vão trabalhar, sem supervisão e mal preparados, em ambulatórios de convênios e plantões de pronto-socorro. Já os que cumprem a residência - que, como já afirmei, só existe onde está implantada toda a moderna tecnologia - saem com títulos de especialistas e não vão trabalhar nos locais onde se constata a deficiência do profissional médico.
Temos de agir, e rápido, na revisão do curso médico. Talvez seja necessário fazer os médicos que se formarem em determinado Estado, por exemplo, permanecerem por um ou dois anos nesse mesmo Estado, designados para as áreas onde há falta deles, mantendo-os sob supervisão da escola em que se graduaram, como pré-requisito obrigatório para pleitearem a residência médica.
Como se vê, o problema de distribuição de médicos é por demais complexo e não se resolve com medidas simples e equivocadas. Talvez seja o momento de pensar uma carreira de Estado capaz de orientar a distribuição desses profissionais no seio da população, oferecendo-lhes condições de trabalho, supervisão e até suporte informatizado.
As entidades médicas estão mobilizadas e dispostas a colaborar na busca de solução racional e permanente, em que não cabe a ideia de corporativismo e se coloque em primeiro lugar a pessoa humana, que sofre, merece respeito e deve ter acesso a médicos competentes e preparados para atendê-la sem o emprego da alta tecnologia, que deve ser utilizada por especialistas.
O Estado de S. Paulo – Espaço aberto